quinta-feira, 9 de maio de 2013


Mais uma da série: Eu mereço. Só que não.

Às vezes saio do trabalho com um cansaço que é fácil de se reconhecer. Já no ponto de ônibus, enfrento o tormento de uma cidade cotidianamente engarrafada e barulhenta. Enquanto aguardo o transporte, não entendo por que os ambulantes insistem em vender CD's na opção de demonstrar o produto no volume mais alto. Ok, penso eu, você está indo para casa, então relaxe. Tenho a sorte de sentar no transporte coletivo, mas logo sinto que ela se esvai, porque um suposto hit começa a ocupar todo o espaço sonoro do veículo, vez que um bunito sentado duas cadeiras à frente se acha um DJ de buzu. Nessa hora ele poderia lembrar pra que serve um fone de ouvido.

Você pensa que, chegando a casa, finalmente poderá descansar. Ledo engano. Esqueci que minha vizinhança é bastante insistente em tentar entreter toda a comunidade ao redor, colocando músicas no áudio máximo. Não importa o dia da semana -- de domingo a domingo -- e, pior ainda, não importa a hora.

Não basta o reggae de um disco batido de Alpha Blondy ou as versões em DUB das canções de Adele nas alturas. Não basta todos os discos de Pablo ou Silvano Salles, em geral com uma das músicas no repeat o dia todo (mesmo!). Também não basta hino de futebol, axé, pagode e música sertaneja. E, sobretudo, não basta o funk carioca com suas letras sugestivas: se eu cozinho, eu como, se eu cozinho, eu como (algo do mais trash "de todos os tempos da última semana", parafraseando o Titãs). 

Enfim, dá de tudo nessa salada musical. E não me levem a mal em falar mal. Independentemente de eu gostar ou não das músicas, o que incomoda, o que irrita profundamente é o barulho.

Eis que, hoje, o que invadiu forçosamente minha janela e meus tímpanos não é nada de novo. A vizinhança -- será alguém da terceira idade? -- achou de tirar do baú as canções imortalizadas por Altemar Dutra, Francisco Alves, Nelson Gonçalves, Sérgio Bittencourt, Elizeth Cardoso, Dalva de Oliveira, Herivelto Martins, Waldick Soriano e todo o pessoal da mais profunda fossa romântica...

♫♪♫ Sentimental eu sou, eu sou demais... ♫♪ Que queres tu de mim?... ♫♪ Aquele amor que sonhei... ♫♪ Boemia, aqui me tens de regresso... ♫♪ De noite, eu rondo a cidade a te procurar, sem encontrar... Volto pra casa abatida, desenganada da vida... ♫♪ Índia, teus cabelos... ♫♪ Cinderela eu sou... Cinderela, menina moça, coração a palpitar, que o seu príncipe encantado vai chegar... ♫♪ Adeus, amor, eu vou partir, ah, eu vou-me embora... você cortou o barato do meu amor, você mentiu, iludiu e me deixou por fora... ♫♪ Velho, meu querido velho... ♫♪ Hoje, que a noite está calma e que minh'alma esperava por ti... Volta, fica comigo, só mais uma noite... ♫♪ Alguém me disse que tu amas novamente... ♫♪ De que é feito afinal esse meu coração?♫♪♫

Tudo bem que, nessa época, nem tão distante assim, a música brasileira produzia uma seresta de responsa. Mas, uma coisa há de ser dita: esse playlist era quase como pedir uma dose certeira de cicuta para aplacar a dor no coração de um ser que padece de amor. Ô povo que sofre, meu Deus!


Capa do álbum de Francisco Alves, "O cantor eclético". Qualquer semelhança não é mera coincidência.
(Imagino que, neste momento, aquele que conhece os supracitados e verdadeiros artistas da fossa estará se perguntando numa epifania reveladora: quem é Pablo na tabela periódica da paixão?)

Já tive, inclusive, meus momentos de ouvir Dolores Duran, Nana Caymmi e Maria Bethânia para aplainar dor de amores. Não vou mentir que, se por acaso houvesse uma cervejinha e se alguns amigos (eles sabem quem são) estivessem em minha casa, poderíamos compartilhar da dor do vizinho, rir, chorar e sofrer juntos, reclamar aos ventos sobre a vida e o mundo, tudo isso sem ter que recorrer ao Facebook para postar piadas, revoltas, indiretas e outras mesmices.

Para mim, o ponto positivo ao escutar as letras das composições tocadas é poder perceber que, na arte de lidar com a dor, não falta criatividade e assunto na música brasileira. No entanto, o ponto negativo é que, recortando um trecho do rei Roberto Carlos, "todos estão surdos", porque ainda falta ao ouvinte aprender a abaixar o volume no dial. Pois, nessa hora, quem acaba sofrendo mais sou eu... http://nasombradoposte.blogspot.com.br/

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